terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Enquanto leio sobre as diferenças e as preferências de postura entre Sartre e Foucault, irrompe um ritual estranho no jardim. Dois quero-queros dançam em círculo em torno de um terceiro do bando, que jaz morto entre a grama menos nobre do terreno do vizinho. O ritmo diferente do grito me chama atenção, interrompe a leitura e vou até lá. Aguardo (e respeito) o luto dos quero-queros, depois preciso colocar uma pá de areia sobre o defunto ou transportá-lo para um local mais digno (o covil do lagarto na mata ciliar ao lado, por exemplo). Quando chego ao funeral, onde também se fazem presentes bem-te-vis, joão-de-barros e canários da terra, sou hostilizado. Como se fosse o assassino. O casal (suponho) quero-quero acocora-se em posição de defesa, se camufla no gramado. Me desculpo e tento chegar mais próximo, quando noto que o terceiro, morto, sumiu. O corpo de delito foi roubado! Ou enterrado? Noto algumas penas em rebuliço no rastro de areia e verde. Nenhum sinal do bichinho. Fico em dúvida se a constatação da noite anterior procede: vimos mesmo, em meio à partida infantil de futebol, aquele quero-quero morto? Seria dissimulação? As penas na cena do crime parecem atestar a miragem noturna, bem como a estranha dança dos parentes. O corpo foi roubado! Estou indignado, mas não entendo dessa legislatura. Não sei a quem recorrer, o mundo animal é hostil no momento. Estresso os quero-queros com minha presença, apesar do álibi convincente. Entre Sartre, que defendia a tomada de partido e Foucault que afirmava a patetice do intelectual comprometido, como me posiciono ante a mazela do jardim? Minha consciência está turva, sordidez animal que me assola. A razão não pode me salvar hoje, vi um quero-quero morto que sumiu, não sei a quem recorrer, logo volto a ler.