terça-feira, 12 de novembro de 2013

avança sobre nós o olho do furacão
(ali onde dizem estar o silêncio do universo)
água da chuva escoa tinta loura de teus cabelos pelo chão
granizo esculpe minha face expressão de horror
de carona no vento, rapaz corre muito mais do que com sua Ferrari
não é o apocalipse porque não li a bíblia
é só um tropeço cósmico chamado vida e suas cores sujas


segunda-feira, 4 de novembro de 2013

visita

cheiro de lençol guardado que se agita quando preenche aquela cama de visita, esperada, celebrada, exausta, mas faminta pela prosa. como é bom adentrar a madrugada nesse espaço de ninguém, essa atmosfera aconchegante do encontro, essa cama recém arrumada, que aguarda tanto tempo no armário pelo calor do corpo, presença da amizade. como nos sentimos tão crianças quando nos deparamos com esse colchão no chão a implorar cambalhotas, tombos cegos, cheiros, tropeços no meio da sala. ansiamos por esse momento, explodimos em novidade que nem sabíamos existir, as vezes bebemos, outras só reafirmamos nossas índoles: imperfeitos, fofoqueiros, cretinos, pagãos. rimos dos tolos, do passado, das fantasias, inocências, afirmações. lamentamos a fugaz passagem do tempo, pouco antes de chegar o sol. dormimos de relance, a rotina dá novo impulso a rotação. o sofá volta a ser o centro da sala, a liberdade outra vez assusta, o lençol espera sobre o braço as tintas aromáticas e a maciez química do tanque. dormimos tensos, de ouvido atento, a espreita de qualquer estranha visita que justifique manchá-lo outra vez com a densidade vivaz do intervalo.

sábado, 2 de novembro de 2013

Obatalá

uma tarde dessas saí da natação e caminhei até a esquina onde uma casa de madeira sem pátio ou calçada me convidou ao passado. a grama era crescida e mau aparada, de uma fofura rara para os passeios urbanos. bem na esquina se erguia linda e carregada como anúncio do inverno, uma bergamoteira dessas selvagens, de mato, da casca fina, pequenina, tão difícil quanto doce e suculenta. olhei pra dentro da casa, pra porta da frente com aquela janela encostada, com certo receio de pegar uma. mas o pé estava tão carregado, que parecia pedir para aliviar o peso incompatível dos galhos. só um inverno imprime tanta fertilidade a bergamota, é um caso de amor, de cumplicidade, porque aquele suco, embora frio, nos aquece, talvez com vitamina, talvez com doçura para cruzar caminhos de gelo no nariz e vento da nuca a lombar (as vezes até o rego). comi três na descida.
ontem, prenúncio de primavera, desci do carro para ir à padaria e dei de cara com uma cerejeira, que um mês atrás espalhava perfume de flor pelo centro da cidade, plena Júlio de Castilhos (essa avenida generalesca!). vinha da natação e colhi algumas cerejas, essa verdadeiras, que mancham e avermelham as bochechas; suculentas e sensuais. lembrei da bergamoteira, que no meio do inverno, em plena produção, foi podada radicalmente. sobrou um toco na esquina, um tronco quase morto que agora conduz o passo ante o terreno íngreme. será que fui eu? aquele furto inocente teve relação com o extermínio? espero que não. e espero que essa peculiaridade frutífera da cidade dure, pois é linda. araçás, ameixas de inverno, pitangas, bergamotas, goiabas do mato, laranjeiras, guabijús, cerejas e caquis. uma quase metrópole que ainda frutifica de forma sadia e poética suas calçadas. que são mal cuidadas, porcas, irregulares e bêbadas, donde brotam árvores férteis a tornar amenas asperezas cotidianas. percursos adocicados pela natureza teimosa da vida insistente, que povoa campo bruto e místico, sem tempo para desfrutes.