segunda-feira, 22 de junho de 2020

gosto do barulho da chuva quando encontra o asfalto, embora o som mais suave seja no choque com o basalto. chuva na grama tem um grave que escorre. na areia, um estampido, e morre. é água com água meu ruído preferido, aquele poing, gota no mar, acariciando o ouvido.

terça-feira, 2 de junho de 2020

a garatuja e o garrancho juntaram os trapos
traçaram metas comuns por uma vida melhor acabada
tanto endireitaram que viraram lição de casa

quarta-feira, 27 de maio de 2020

(a vida em Barcelona foi prenúncio)

Saio para sacada na expectativa de banhar-me um pouco à lua cheia, mas da fresta entre os prédios só o rastro de um avião. Vindo da Ásia. Tenho fumaça cubana no peito, vinho do Porto como paladar. Improvável acreditar em harmonização, quando sabemos que o vinho do porto foi um fracasso inglês à beiro do Douro. Ao menos mantém a chama. A frente da estação Hospital Sant Pau/Dos de Maig é uma da manhã. A temperatura já é amena, vê-se no horizonte um azul mais anil. Um punk e seu cachorro farejam baganas na calçada (quase lanço meu terço de Bolivar sacada abaixo). É o último. Rememoro Cuba em frente ao passeio modernista, Havana, paralisada na década de cinquenta, com seu povo carente de dólares e convívio cosmopolita. As críticas desconstroem o sonho socialista (todos em Cuba são achacadores), mas em Disney ou Miami? Mistura fina. Com a porta de vidro fechada parece que estou fora do apartamento, culpa do barulho da rua, sou quase livre para habitar apenas o pensamento. A dificuldade das crianças com a escola e o Catalão, o desconforto da esposa com a estadia pungente na Catalunya quase somem. Esse rugido de madrugada e urgência ocupa tudo. as mãos queimam, saliva borbulha na boca, me transformo num canal. Já não sei o tempo de parar, madrugada irrompe, quero caneta, palco, violão. Venha o que vier, estarei pronto, como um desprezível rompe-mato em combate. Dessa superfície me alimento: os primeiros amores, as letras de improviso, acordes mínimos. Teorias densas, desde que adaptáveis a um meme. Já não sou tão letrado, embora meus filhos me considerem gênio e minha tímida província admire minha perspicácia ao abandonar dinheiro certo em busca de aventuras vividas num ecossistema em crise. (Maldito corretor que me antecipa) Como se garantir o emprego frente o apocalipse fosse sinônimo de inteligência! Ensejo a madrugada com minhas tripas e minha alma, quero estar entre as calçadas de Barcelona, onde o Modernismo, confundido com merda de cachorro patinetes e rastros de bengalas, sugere o futuro inanimado de um mundo velho. o Velho Mundo, as superpotências, todas essas falácias palacianas que inundaram nossa inocência latina, são piadas prontas quando ultrapassamos o sorrir amarelo, a cordialidade, a hospitalidade, o fingir acaso. Há sempre uma urgência para quem não detém o poder. O sin papeles está aviltado e essa é a garantia do norte Mediterrâneo, garantia que se espraia ao globo quando a comunidade mais sanguinária e deseducada dita as regras. O bem-viver, a civilização, o cosmopolitismo e o progresso. Jazem no sorriso amarelo do nativo. Colombo aponta para as Índias no ponto mais visitado de Barcelona. Os latino-americanos esperam ver sua importância declarada no Nobel ou no Oscar. "Nunca serão!", reclama um perdedor quando não consegue mais garantir à força seu espaço inanimado no mundo dos brutamontes. Financiado (uma vez mais) pelas Cinderelas e sacripantas do Atlântico Norte. A marca registrada não nos salvará, nem o aprendizado extemporâneo. Quem sabe o colapso, quem sabe... (março, 2017)

quarta-feira, 20 de maio de 2020

eu tive uma carochinha que trabalhou pra mim quando eu era criança. ela voava, enquanto eu a segurava por um barbante preso à perna. era um lindo espetáculo pelas ruas. de tanto ímpeto, a força decepou sua perna. voou mais alto, feliz pela proximidade com o sol, mas a noite chorava, não a dor da perna amputada, mas a ausência de um nó que lhe determinasse direção.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

o céu da minha cidade tem poucas estrelas. da janela enxergo elas embaçadas. talvez pelo esforço em tentar ver a chuva de meteoros logo ali atrás. ou seria lá em cima? céu tão murcho que dá até vertigem.

terça-feira, 17 de março de 2020

Uns conhecidos de uma surf shop me convidaram para uma excursão pra praia do Rosa. Seria a primeira vez que eu andaria de van depois de um grave acidente que sofri cerca de dois anos antes. Neguei com veemência até ser convencido pelo "tudo de graça". Na viagem, por conta do trauma ou algo parecido, tinha certeza que algo daria errado. Batata! Num entroncamento em São João do Sul, atropelamos uma vaca. A BR-101 ainda não era duplicada e o animal atravessou a pista no meio da madrugada. Era uma noite fria, não lembro se era inverno (provavelmente outono). Eu e um amigo ficamos preocupados com o motorista, única pessoa que se feriu, luxou a perna, e tomamos a frente para ajudá-lo, além de responder para a polícia, quando chegou. Entre outras, pra mim, aquela noite foi uma lição sobre humanidade. O motorista, junto da empresa responsável pela van, nos informou que seria necessário guinchar o veículo e esperar outro transporte vindo de Porto Alegre. Passaríamos a madrugada por ali. Enquanto esse tema se resolvia, a polícia rebocava a vaca com um sorriso de canto de olho, afirmando que "vacas atropeladas nunca tem dono, mas tem carne pro churrasco", dando a impressão de que não teriam a mínima vontade de encontrar o responsável pelo animal solto no lugar errado. Pra piorar, quando tudo foi resolvido, voltamos, eu, meu amigo e o motorista para a van e os outros membros da excursão já estavam confortavelmente instalados, entre cobertores e casais, sem espaço para nos abrigarmos do frio. Ficamos em pé, ao relento, vendo a lua e filosofando por um tempo, pensando no egoísmo, na seleção natural, nessa teorias sobre o que é o homem frente a um momento de exceção. A parte bonita da história é que fomos convidados por um simpático senhor da vizinhança a ir para sua casa tomar um chá quente, comer bolo e outras delícias, como forma de nos abrigar daquele frio tenebroso. Toda vez que agradecíamos, ele repetia: "que isso gente!", numa espécie de indignação natural. De dentro da sala aconchegante da casa, olhávamos para a van abandonada na estrada, sem o vidro da frente, atravessada pelo vento e pela insensibilidade dos nossos companheiros de excursão. Naquela noite, parecia visível pra mim essa espécie de muro entre a humanidade e a bestialidade, entre a colaboração e a competição. Me senti abrigado e confortado, mas atento, sempre atento, para a incapacidade humana de coletividade. Os pequenos momentos de exceção nos testam e ensina, talvez nos habilitam para os estados de exceção que vivenciaremos, caso a vida não nos seja tão breve.  Quando a van substituta chegou, pedi para me deixarem na rodoviária mais próxima, em Sombrio. Não tinha estômago para seguir viagem com aquela turma, além de acreditar que era culpa minha a pequena tragédia da viagem. Sempre fui um misto de sofisticada razão complexa e crendice supersticiosamente exagerada.  

quinta-feira, 5 de março de 2020

a vida melhorou para os morcegos nos últimos tempos. é possível existir nas redes, seja numa frase qualquer, numa foto, num evento. os acordados do mundo se encontram nesse radar colorido e interativo chamado rede social. há poucos anos, nas pequenas cidades, o equivalente a essa maravilha eram as lojas de conveniência dos postos de gasolina. ali, madrugadas adentro, você poderia mostrar-se, postar filosofemas inteligentes, encontrar vida para além do corujão. só não existia a opção de bloquear amigo, silenciar mensagens ou fingir inexistência. era poético. e violento. era surpreendente. e tinha cheiro.
na vida, vinha utilizando meu sorriso como escudo até ir ao dentista semana passada e descobrir que estou com um dente incisivo trincado. doutor afirmou tratar-se de algo comum nessa idade e sugeriu que eu passe a usar a língua como espada, a partir de agora. a melhor defesa é o ataque.
ainda criança, achei “feio” Fernando Pessoa admitir que o poeta mente. a base da inocência é a fé na verdade. hoje, me assusto quando algum adulto acredita, sem dúvidas, em suas próprias verdades. as certezas guardam certa fantasia arrogante. e até ignorante. àquilo que nomeei poesia, no fundo, era apenas mentira. ou uma eloquente certeza da incerteza. nenhuma criança tardia teimaria tanto.
de repente, o Brasil zerou os juros
zerou as juras também
virou país sem fé
e sem crédito
terra à vista
vida a prazo.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

eu era moço muy jovem
sequer sombra tinha
não sei se porque o sol me ignorava
ou porque o chão me sustentava invertido
mas era divertido não ferver
apesar de, eventualmente, evaporar
a racionalidade tecnocrática domesticou a esquerda. esquecemos uma lição básica: vivemos em contradição. queremos distribuição de renda e iphone ao mesmo tempo, sim! essa é a base material de onde parte o pensamento crítico. mas fomos colonizados pelo pensamento dicotômico da direita. é isso ou é aquilo. não se contradiga! caminho perigoso. em lugar de unidade dialética, balaio de gatos minoritários e lacrando. uns contra os outros, uns apesar dos outros. favorecendo, sobre o manto sagrado do lugar de fala, certas superficialidades redutoras. é atitude hypster criticar o Bolsonaro, mas quais as contradições animam seu discurso e as adesões a seu projeto? por que minorias que ele ataca relativizam seus discursos, enquanto nós, intelectuais orgânicos da esquerda, não conseguimos lembrar dessa herança que foi o materialismo dialético? somos contradições. alienados, mas vivos. com sede de mudança, mas canibais. devorando nossas iniciativas de resistir como se fossem erros crassos. a direita festeja, pois herdou a filosofia do perdão e da penitência de sua verve cristã, e se multiplica, graças a sua moral infiltrada na nossa falta de fé.