sexta-feira, 30 de agosto de 2019

três da manhã, apartamento hermeticamente fechado, estou na fase final de submissão de um artigo para uma revista científica via internet, abro uma cerveja, iluminado pela tela do computador, sinto uma presença estranha no escritório, uma vibração, uma mosca varejeira gigante se choca contra a tela branca, levo um susto aterrorizante, ela vai e volta, fico à cata, fico às voltas, um Breaking Bad careta, um Breaking Bad proletário, uma dispersão surrealista da produtividade do quarto turno de trabalho, o medo de que essa mosca morcego se afogue em minha cerveja, a única e última, ela ainda está por aqui, sinto sua presença, asas vibram, eu não, estático zum zum zum.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

chega o dia em que você tem que esperar acordado seu filho que chegará mais tarde. o choque é tamanho que você até esquece que é boêmio.
vinha pela avenida Júlio hoje à noite, quando ouvi se aproximar aquela sonzeira bate-estaca grave, típica das saveiros. fiquei à espera do carro, mas quando me dei conta, era um sujeito na maior paz, do outro lado da rua, estremecendo tudo com a potência sonora da mochila. fiquei imaginando se ele carregava uma bateria de carro nas costas ou se a tecnologia nos sacaneou de novo. primeira vez que vejo um homem tunado, a pé.
(conto aumentando um ponto)
comprei um amplificador para aumentar a potência dos meus fones de ouvido. gosto de escutar música caminhando pela cidade, mas motos aceleradas e carros tunados me atrapalham. usava com frequência até ser atropelado por um halterofilista (ou algo do gênero). ele vinha apressado, teclando em seu celular algum assunto urgente. me atingiu e caí violentamente no chão. ao chocar com o meio-fio, a haste do meu fone quebrou e penetrou meu tímpano. o grandão não me socorreu, tinha pressa. mesmo extraviado o fone continuava tocando "Fast Cars", do Buzzcocks. eu e essa minha mania de viver perigosamente. preciso de um fone wi-fi.
uma versão possível da história da arte: gênios acomodados soterrados pelos medíocres ambiciosos (não fossem os oportunistas de obras póstumas).
é provável que a gente embruteça, mas é possível que a gente se conheça, numa esquina pouco iluminada, protegida da luz ofuscante da estatística.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

o professor universitário, enquanto uma espécie de conselheiro tardio, recebe como matéria-prima para seu trabalho certo volume de sonhos: adiados, mutilados, superestimados, recalcados, esquecidos, perdidos, suspensos, mal-trabalhados, ilusórios, tresloucados, imperfeitos, importados, mal-vistos, mal-quistos, benditos, benignos, alucinados, inalcançáveis, habitáveis, fáceis, justos, impossíveis, necessários, sábios, ideias, fatais, revolucionários, alienados, consumados, e por aí vai... um primeiro dia pode ser tudo e pode ser o último, para esses que sonham e para aquele desiludido ali na frente, esperançoso, graças aos olhos que interrogam: vale?