quarta-feira, 27 de maio de 2020

(a vida em Barcelona foi prenúncio)

Saio para sacada na expectativa de banhar-me um pouco à lua cheia, mas da fresta entre os prédios só o rastro de um avião. Vindo da Ásia. Tenho fumaça cubana no peito, vinho do Porto como paladar. Improvável acreditar em harmonização, quando sabemos que o vinho do porto foi um fracasso inglês à beiro do Douro. Ao menos mantém a chama. A frente da estação Hospital Sant Pau/Dos de Maig é uma da manhã. A temperatura já é amena, vê-se no horizonte um azul mais anil. Um punk e seu cachorro farejam baganas na calçada (quase lanço meu terço de Bolivar sacada abaixo). É o último. Rememoro Cuba em frente ao passeio modernista, Havana, paralisada na década de cinquenta, com seu povo carente de dólares e convívio cosmopolita. As críticas desconstroem o sonho socialista (todos em Cuba são achacadores), mas em Disney ou Miami? Mistura fina. Com a porta de vidro fechada parece que estou fora do apartamento, culpa do barulho da rua, sou quase livre para habitar apenas o pensamento. A dificuldade das crianças com a escola e o Catalão, o desconforto da esposa com a estadia pungente na Catalunya quase somem. Esse rugido de madrugada e urgência ocupa tudo. as mãos queimam, saliva borbulha na boca, me transformo num canal. Já não sei o tempo de parar, madrugada irrompe, quero caneta, palco, violão. Venha o que vier, estarei pronto, como um desprezível rompe-mato em combate. Dessa superfície me alimento: os primeiros amores, as letras de improviso, acordes mínimos. Teorias densas, desde que adaptáveis a um meme. Já não sou tão letrado, embora meus filhos me considerem gênio e minha tímida província admire minha perspicácia ao abandonar dinheiro certo em busca de aventuras vividas num ecossistema em crise. (Maldito corretor que me antecipa) Como se garantir o emprego frente o apocalipse fosse sinônimo de inteligência! Ensejo a madrugada com minhas tripas e minha alma, quero estar entre as calçadas de Barcelona, onde o Modernismo, confundido com merda de cachorro patinetes e rastros de bengalas, sugere o futuro inanimado de um mundo velho. o Velho Mundo, as superpotências, todas essas falácias palacianas que inundaram nossa inocência latina, são piadas prontas quando ultrapassamos o sorrir amarelo, a cordialidade, a hospitalidade, o fingir acaso. Há sempre uma urgência para quem não detém o poder. O sin papeles está aviltado e essa é a garantia do norte Mediterrâneo, garantia que se espraia ao globo quando a comunidade mais sanguinária e deseducada dita as regras. O bem-viver, a civilização, o cosmopolitismo e o progresso. Jazem no sorriso amarelo do nativo. Colombo aponta para as Índias no ponto mais visitado de Barcelona. Os latino-americanos esperam ver sua importância declarada no Nobel ou no Oscar. "Nunca serão!", reclama um perdedor quando não consegue mais garantir à força seu espaço inanimado no mundo dos brutamontes. Financiado (uma vez mais) pelas Cinderelas e sacripantas do Atlântico Norte. A marca registrada não nos salvará, nem o aprendizado extemporâneo. Quem sabe o colapso, quem sabe... (março, 2017)

quarta-feira, 20 de maio de 2020

eu tive uma carochinha que trabalhou pra mim quando eu era criança. ela voava, enquanto eu a segurava por um barbante preso à perna. era um lindo espetáculo pelas ruas. de tanto ímpeto, a força decepou sua perna. voou mais alto, feliz pela proximidade com o sol, mas a noite chorava, não a dor da perna amputada, mas a ausência de um nó que lhe determinasse direção.