segunda-feira, 31 de março de 2014

paira uma umidade quente no ar
ainda não é inverno
lentamente percebo a neblina instalar-se pela janela
sumindo com os prédios ao fundo
em seguida as copas das árvores. aqui, quase a minha frente
sinto uma vontade de passar a mão no vidro
tentar desembaça-lo como a uma lente de óculos ou contato
parece que a neblina está em mim
vivendo aqui ao lado do estômago
que sente tudo intensamente
desde as erupções da rua, até os pés descalços dos catadores
há revoltas entre a boca e o ânus
e os médicos delimitam a zona de abrangência: gastrites
um estágio acima do refluxo
do bucho ou do mundo, eis um bom ponto de partida para a pergunta
mas ainda teimo em querer saber o que vive além da neblina
se enquanto as coisas somem de minha visão, persistem
se existem com normalidade longe do meu escrutínio
o sábia parece quieto, os prédios desligaram-se das novelas
até os pequenos larápios do bairro esqueceram de procurar abrigo nos bolsos dos estudantes que retornam miseráveis, cansados e muito mais burros do que antes da escola
quase adormeço nesse transe ante a janela
e desperto em sobressalto
a névoa se dissipa lentamente
como se brisa sul a aliviasse sem pressa
um efeito de Fellini

nada está por detrás
os objetos sumiram, todos a um só tempo
chego a correr na direção do ar ao lado de fora, sou engasgado pelo vácuo
há um imenso vazio indescritível, inenarrável
estou finalmente só no apartamento
salvo pela rede social que ampara minha perplexidade a seguir
comenta sem pressa ou angústia o tom humorístico com que encaro tudo isso
esse desaparecimento mágico de um real que me cercava após passagem meteórica de neblina outonal nas imediações do sétimo andar
desligo o computador com certo medo
pois se não existem mais os postes, os fios, as conexões até esse prédio, como pode tudo funcionar normalmente como uma ilusão?
penso em descer até a calçada, procurar os vizinhos, compartilhar as dúvidas
mas a pergunta ainda não está clara:
eu olhava por que janela?  

quinta-feira, 27 de março de 2014

dialética

dialética é uma bruma de outono
que desagua em melancolia
nos leva a ouvir tango
que desagua em melancolia
esfriando ainda mais o inverno que se aproxima
nos leva a ouvir tango
estar embebido da bruma de outono
que desagua em melancolia
que nos leva a ouvir tango
que dissipa bruma em inverno
que nos leva a ouvir tango
estar pleno de inverno
em melancolia pura
ouvindo tango a espreita da flor
que quando desabrocha
é pura melancolia
que nos leva a ouvir tango
saudosos de uma bruma
que o laranja do botão nos relembra
ao som de um tango
enquanto o som preenche o espaço
num dia tão longo
que nos leva a ouvir tango

quinta-feira, 20 de março de 2014

Coração Supõe

coração supõe
que em torno das mágoas em que vive
bate mais por amor
o sopro é a alma do cantor

coração a dor
que alimenta o ser é a força rimada
ritmada pra viver, o pulsar
ter no sangue a poesia

ventre de fados livre
vinte quatro anos à sombra dos teus planos
à espera de um grande sonho nascer
tudo acontecer

(outono, 2004)

terça-feira, 18 de março de 2014

- e aí cara, como vai? correndo?
- não. não estou correndo não. tranquilo.
como é bom ouvir um comprimento sincero vez ou outra.

quarta-feira, 12 de março de 2014

cortei o dedo na página do livro
não.
o livro cortou meu dedo
armado de afiadas entrelinhas

domingo, 9 de março de 2014

toda noite quando te levo pra cama e cubro tuas pernas com esse lençol colorido e autêntico, respiro fundo, fico feliz e alimento teus sonhos com as trilhas sonoras que ainda ouso compor na imaginação ou num lábio trêmulo que balbucia ritmos descompassados. chamo a persistência de coragem e teu sono pesado de paz; entre as explosões de tantas galáxias e sentimentos. chego a suspirar: pra que esperar tanto da vida?

sexta-feira, 7 de março de 2014

um verão desses eu e meu melhor amigo sonoro sentamos numa sacada beira-mar. dessas sacadas curtas, com pouco espaço para acomodar os pés. munidos de violão e uma cachaça barreira musicamos aquela noite inteira com nossas composições. sorrimos e choramos abraços cancioneiros de uma amizade rara, das cordas e da voz desafinada, mas do peito infantil e amistoso da poesia iletrada. admiradores num espelho enviesado, Narcisos meninos. cordas e garrafas quebradas naquela noite, luas menos cheias hoje, mudas quando não as refletimos no tampo do violão, ou numa frase feminina, rima quase fútil, de nossos quereres. nem sempre sou saudoso, excepcionalmente quando finda o verão e a alma degela seu frescor imunológico antevendo a hibernação. a pele lentamente se aquece a medida em que na rua as folhas caem, a umidade se posiciona, as noites fazem morada. há melancolia demais em meu peito para ir até uma sacada dessas hoje, não porque esteja longe da praia, mas porque minha voz acordou da meninice e porque meu amigo há muito não soa suas cordas comigo. tanto tempo que já nem lembro mais.