quarta-feira, 30 de outubro de 2019
apareceu um busto esculpido em Caxias do Sul, mas ninguém reconhece de quem é. talvez seja de um general, de um político ou de um religioso. de quem mais seria? acho que é de um zé ninguém. é um fato que tem a cara de Caxias, a cidade mais repleta de ilustres medíocres em busca de um escultor que cobre barato pela sua arte
dias atrás um homem roubou um ônibus de linha e saiu dirigindo por duas horas, vestido só de cuecas. tempos depois, atirou um tijolo na vidraça de um banco no centro da cidade e foi preso, em seguida liberado. hoje morreu, não informaram a causa e seu corpo espera a chegada de um familiar para ser liberado do atendimento de saúde, diz a notícia. pra mim, parece que a notícia seria somente o que aconteceu entre esses três atos, mas o interesse quer o extraordinário.
quando levo um filho dormindo, nos braços, até sua cama, dou uma leve chacoalhada antes de largar. quem sabe misturo aqueles sonhos, e sai um herói daqui beijar algum vilão de lá, ou uma memória se desprende e invade a via láctea, manchando tudo de chocolate. quem sabe surja, daqui uns anos, um mundo mais atravessado por esse curto-circuito onírico, alheio à gravidade.
no caminho cotidiano para o trabalho, passamos a nos
cumprimentar, eu e um sapateiro da 18. passo quase todo dia na frente de sua
loja logo após o meio-dia. ele sempre sorri simpático e profere um "tudo
bem?" com energia. eu, com meu trabalho de desacomodar mentes para que
caminhem na direção do que querem, ele, garantindo um mínimo de conforto aos
pés e aos corpos. do calcanhar a coluna, a distância é ilusória.
sou especialista em nada. na escola, sempre fui bem em
física, educação física e português. escrevi uma redação sobre logaritmos.
errei no vestibular, não fui tão profundo como deveria. especialista em coisa
alguma, tenho uma vantagem: sei de basquete, regra de três, parábolas bíblicas,
xadrez. mas ainda nunca sempre estou pronto para o que, de fato, preciso
dominar. não sou esse especialista. dedilho um violão, estrago as unhas no
contrabaixo, posso me arriscar num omelete ou num feijão. não conheço a lesão
do esforço repetitivo, nada é tão permanente que me afeiçoe. na ditadura do
encontrar-se, sou o doce marginal fã de labirintos. nunca desvendei, nunca
achei a arca, sequer desejo o prêmio. navego ermo, madrugada adentro ou
despertando cedo, muitas vezes em sequência. chimarrão e coca. vinho e
eletrólitos. saúde e hedonismo. elogio a superficialidade e não tenho razão,
sequer racionalidade suficiente para pertencer. ao iminente estabelecimento,
fujo. embora aceite, escravo, levar a casa nos ombros como um prêmio de
consolação pela energia da busca.
terça-feira, 15 de outubro de 2019
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vi hoje uma cena que me instigou a escrever. mas quando ia
postar, o facebook me alertou: compartilhe essa lembrança de 3 anos atrás.
frase idêntica. será a primeira primavera após meus 11 anos em Caxias que não
escreverei sobre as frutas urbanas que morrem estéreis nas calçadas. achei
muito cruel a inovação da poética 4.0. nem o mais do mesmo posso ser com
ingenuidade. apesar de que sempre guardei tudo que escrevi, gravei tudo que
cantei, preservei trapos e quinquilharias autorais justamente por isso. não sou
de ser entrega, sou de processo. nunca fiz nada como fim, estou nesse meio, por
tempo indeterminado. guardo tudo, não para posteridade, sequer para herança ou
reconhecimento póstumo. me leio, me escuto, me vejo. talvez em demasia, como um
Narciso ao avesso. mas não por admiração. estudo? psicanálise? quem era eu
naquele tempo? "olha como repito esse dilema. oh deus, sou o mesmo moleque
de sempre!" por certo, não seria quem sou, não fossem esses retornos, esse
debruçar-se sobre o que escrevo, escutar-se distante, perdido entre as eras,
simplesmente por medo de ser mais enérgico com o tempo. não sou. respeito.
deixo a poesia reaparecer como ciclo e desventura, como o aviso do vento,
"é de novo janeiro e você ainda não cumpriu aquela palavra" (de
tantos e tantos dezembros de água e Iemanjá). escuto as cartas como retratos ou
garrafas de náufrago. e volto a escrever, apesar da página avisar: "há uma
lembrança perdida a recordar, não reescreva se é tão fácil voltar". meu
passado nunca é nostalgia, navega hoje, treva e superfície. as vezes avança,
mil vezes naufraga, e lança óleo poético nas profundezas do Atlântico.
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