terça-feira, 10 de dezembro de 2019

de viagem

toda poesia que me antecipa parece chamada telefônica ocupada, mensagem não lida.
toda poesia que me antecipa é bonde lotado, sinônimo ideal para verso morto.
toda poesia que me antecipa é cadáver, caixão, porto sem atracadouro.
toda poesia me antecipa, sou o comum, e ainda nem nasci.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

cheguei a pensar que era virtude e vantagem acumular músicas e poesias compostas na juventude. mal sabia que as obras abandonadas viram fantasmas e se alimentam das pequenas destemperanças da vida adulta. assombram, sem aviso, a normalidade de toda causa. não têm piedade, querem estar entre os vivos, serem executadas, relidas, referidas, ouvidas. são as asas que nunca podei, disfarçadas sob as escapulas. são as asas que garantem a sombra nos dias mais luminosos e refrescam todos a minha volta quando a aridez do real retalha sem dó. são temperança, carência e bom humor. as piadas que nunca decorei, a metade dourada do ser. meus fantasmas, que cultivei sem importância e agora querem um emprego formal, registro, auxílio-doença, o normal. achei que seria virtude criar múltiplas vidas, como um cubista ou um inventor. esqueci de fechar a tampa, de cessar a ânsia, da última peça compor. quem tem a chave do baú? 

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

apareceu um busto esculpido em Caxias do Sul, mas ninguém reconhece de quem é. talvez seja de um general, de um político ou de um religioso. de quem mais seria? acho que é de um zé ninguém. é um fato que tem a cara de Caxias, a cidade mais repleta de ilustres medíocres em busca de um escultor que cobre barato pela sua arte
dias atrás um homem roubou um ônibus de linha e saiu dirigindo por duas horas, vestido só de cuecas. tempos depois, atirou um tijolo na vidraça de um banco no centro da cidade e foi preso, em seguida liberado. hoje morreu, não informaram a causa e seu corpo espera a chegada de um familiar para ser liberado do atendimento de saúde, diz a notícia. pra mim, parece que a notícia seria somente o que aconteceu entre esses três atos, mas o interesse quer o extraordinário.
quando levo um filho dormindo, nos braços, até sua cama, dou uma leve chacoalhada antes de largar. quem sabe misturo aqueles sonhos, e sai um herói daqui beijar algum vilão de lá, ou uma memória se desprende e invade a via láctea, manchando tudo de chocolate. quem sabe surja, daqui uns anos, um mundo mais atravessado por esse curto-circuito onírico, alheio à gravidade.

no caminho cotidiano para o trabalho, passamos a nos cumprimentar, eu e um sapateiro da 18. passo quase todo dia na frente de sua loja logo após o meio-dia. ele sempre sorri simpático e profere um "tudo bem?" com energia. eu, com meu trabalho de desacomodar mentes para que caminhem na direção do que querem, ele, garantindo um mínimo de conforto aos pés e aos corpos. do calcanhar a coluna, a distância é ilusória.


sou especialista em nada. na escola, sempre fui bem em física, educação física e português. escrevi uma redação sobre logaritmos. errei no vestibular, não fui tão profundo como deveria. especialista em coisa alguma, tenho uma vantagem: sei de basquete, regra de três, parábolas bíblicas, xadrez. mas ainda nunca sempre estou pronto para o que, de fato, preciso dominar. não sou esse especialista. dedilho um violão, estrago as unhas no contrabaixo, posso me arriscar num omelete ou num feijão. não conheço a lesão do esforço repetitivo, nada é tão permanente que me afeiçoe. na ditadura do encontrar-se, sou o doce marginal fã de labirintos. nunca desvendei, nunca achei a arca, sequer desejo o prêmio. navego ermo, madrugada adentro ou despertando cedo, muitas vezes em sequência. chimarrão e coca. vinho e eletrólitos. saúde e hedonismo. elogio a superficialidade e não tenho razão, sequer racionalidade suficiente para pertencer. ao iminente estabelecimento, fujo. embora aceite, escravo, levar a casa nos ombros como um prêmio de consolação pela energia da busca.

terça-feira, 15 de outubro de 2019


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vi hoje uma cena que me instigou a escrever. mas quando ia postar, o facebook me alertou: compartilhe essa lembrança de 3 anos atrás. frase idêntica. será a primeira primavera após meus 11 anos em Caxias que não escreverei sobre as frutas urbanas que morrem estéreis nas calçadas. achei muito cruel a inovação da poética 4.0. nem o mais do mesmo posso ser com ingenuidade. apesar de que sempre guardei tudo que escrevi, gravei tudo que cantei, preservei trapos e quinquilharias autorais justamente por isso. não sou de ser entrega, sou de processo. nunca fiz nada como fim, estou nesse meio, por tempo indeterminado. guardo tudo, não para posteridade, sequer para herança ou reconhecimento póstumo. me leio, me escuto, me vejo. talvez em demasia, como um Narciso ao avesso. mas não por admiração. estudo? psicanálise? quem era eu naquele tempo? "olha como repito esse dilema. oh deus, sou o mesmo moleque de sempre!" por certo, não seria quem sou, não fossem esses retornos, esse debruçar-se sobre o que escrevo, escutar-se distante, perdido entre as eras, simplesmente por medo de ser mais enérgico com o tempo. não sou. respeito. deixo a poesia reaparecer como ciclo e desventura, como o aviso do vento, "é de novo janeiro e você ainda não cumpriu aquela palavra" (de tantos e tantos dezembros de água e Iemanjá). escuto as cartas como retratos ou garrafas de náufrago. e volto a escrever, apesar da página avisar: "há uma lembrança perdida a recordar, não reescreva se é tão fácil voltar". meu passado nunca é nostalgia, navega hoje, treva e superfície. as vezes avança, mil vezes naufraga, e lança óleo poético nas profundezas do Atlântico.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Na beira da BR

Quando passo pela BR, entre Porto Alegre e São Leopoldo, noto que:
os prédios estão envelhecendo comigo (a gravidade é pra mim o que a fuligem é pra eles)
a antiga fábrica de óleo segue sua alternância de proprietários, que sempre, e somente, redesenham só a fachada (agora é Dupont),
a beira do arroio da Petrobrás ainda é o lar de uma família que preserva o hábito de estender as roupas de frente para a faixa,
a sauna Coquetel fechou, primeiro puteiro que me vendeu bebida, graças à persistência do Carioca,
não existe mais o adesivo "oi Bibi", recado da Giana colado na janela do antigo apartamento do Marcelo,
há uma escultura com os dizeres "Canoas" na primeira entrada da cidade,
alguns sujeitos fitness usam a beira da faixa para praticar corrida atlética (o que será desses pulmões?! e dos cérebros?!),
o clube ao lado da rodoviária de São Léo reabriu (provavelmente sob nova direção) com o nome Joy (achei tão Manchester),
há muitos pavilhões para alugar e prédios abandonados, cobertos de pixos e com os nomes dos negócios apagados nas fachadas, carcomidos pela poeira cinza escuro,
há obras na ponte sobre o Rio dos Sinos e a vila ao lado (não lembro o nome) cresceu muito,
a parada da Cohab, em Sapucaia, está descoberta e o Atacadão, ali perto, conecta esse bairro com o mundo globalizado das vendas em larga escala (vi um Atacadão em Agadir, litoral do Marrocos - isso não é figura de linguagem),
na mesma linha, em São Leopoldo, na saída para a RS, abriu um Makro, essa primeira experiência de consumo abundante via CNPJ, que ficava no outro extremo, Porto Alegre, ainda nos tempos de inflação, racionamento, fiscais do Sarney (é o que a memória alcança), super Dosul, obras da Tabaí e minha mãe feliz em poder pagar um rancho à vista,
Tudo são lágrimas quando cruzo essa BR, quando lembro do menino apressado que atropelamos saindo do Macdonalds, em disparada tentando vencer a mureta. Palavras do policial frente ao corpo estraçalhado: - a principal testemunha é a passarela - sempre achei que foi um horrível texto ensaiado e de mau gosto. Enquanto o pai chorando ao afirmar que ele não precisava trabalhar, que ele (o próprio pai), que impunha isso como uma espécie de aprendizado sobre a vida.
Não notei se ainda está aberta a churrascaria Zequinha, outra testemunha do caso.
Mas não choro pela alma do guri, cuja rosto nunca esqueci, nos milésimos de segundo antes de se espatifar contra o pára-brisa do carro.
Choro porque esse trecho, talvez essa estrada, tenha me feita rodar tanto, andar tanto, de um lado a outro, mas sempre na direção de nada. Lugar algum. Sempre o mesmo.
Gastei pneus, gastei bilhetes, gasosa, até tênis gastei nesse trecho. Gente viva, gente morta, gente que nem reconheceria mais. Andei na chuva, no perigo, de Real Rodovias, de Central, de trem, de táxi, carregando e carregado. Mas não compreendo porque o nome BR, se continuo por aqui, apenas um pouco mais pra cima.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019


Conheci Daniel Johnston bem depois de ter gravado minha última composição em fita cassete. Ignorei aquela camiseta do Kurt Cobain. Quando ele apareceu na MTV não era tão simples encontrar as informações, a gente ouvia as histórias dos artistas através de boatos, de alguém que comprava uma revista importada ou de um programa legal de TV, Lado B, por exemplo. Mas mesmo sem saber quem era ele, ouvi sua música ao longo da vida, de forma desavisada, numa trilha ou numa versão, em Kids ou com o Yo la Tengo. Só quando saiu seu documentário que descobri esse cara, o que ele fazia, bem como a própria noção de músico outsider. Tivesse conhecido antes, talvez, teria reduzido minha ansiedade de adolescente em busca de identidade. Essas noções, talvez, teriam ajudado a explicar minhas próprias práticas e desejos de juventude, quando experimentava no silêncio da madrugada do meu quarto todo tipo de gravações em fitas cassete usadas, por mim ou por gravadoras, como modo de expressão. Deixava trechos de cursos de inglês para sobrepor um som de folha raspando no ventilador conectado a uma caixa com um inverse delay. O único truque de mixagem que aprendi nessa época foi usar um tape deck duplo e colocar uma fita tocando junto com um microfone captando outro canal. Meu vizinho Bexiga, deu a dica, na época vocalista do ORTN, "sou do DMLU, quem não gostou, fuck you!" Acho romântica a expressão outsider music, mas não a conheci a tempo de me enquadrar nela, aliás, sempre chego atrasado nos enquadramentos e fico pelo caminho, à procura de um nome que se apegue ao que tento ser. Depois que assumi uma espécie de carreira produtiva padrão, mais distante daquele sonho de menino, de ser rockstar, sempre pensei que as madrugadas brincando com o gravador me tiraram de um caminho, quiçá, virtuoso. Deixei de ler muita coisa, de aprimorar meu inglês, de estudar para aquele concurso público. Em troca, acumulei duas caixas de sapatos com registros em cassete. Que, provavelmente, nem tocam mais, graças à perda do magnetismo. Talvez, também eu seja esse talento magnético perdido numa daquelas gavetas, sempre em fuga, sempre atraído por essas coisas que ainda não tem nome.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

três da manhã, apartamento hermeticamente fechado, estou na fase final de submissão de um artigo para uma revista científica via internet, abro uma cerveja, iluminado pela tela do computador, sinto uma presença estranha no escritório, uma vibração, uma mosca varejeira gigante se choca contra a tela branca, levo um susto aterrorizante, ela vai e volta, fico à cata, fico às voltas, um Breaking Bad careta, um Breaking Bad proletário, uma dispersão surrealista da produtividade do quarto turno de trabalho, o medo de que essa mosca morcego se afogue em minha cerveja, a única e última, ela ainda está por aqui, sinto sua presença, asas vibram, eu não, estático zum zum zum.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

chega o dia em que você tem que esperar acordado seu filho que chegará mais tarde. o choque é tamanho que você até esquece que é boêmio.
vinha pela avenida Júlio hoje à noite, quando ouvi se aproximar aquela sonzeira bate-estaca grave, típica das saveiros. fiquei à espera do carro, mas quando me dei conta, era um sujeito na maior paz, do outro lado da rua, estremecendo tudo com a potência sonora da mochila. fiquei imaginando se ele carregava uma bateria de carro nas costas ou se a tecnologia nos sacaneou de novo. primeira vez que vejo um homem tunado, a pé.
(conto aumentando um ponto)
comprei um amplificador para aumentar a potência dos meus fones de ouvido. gosto de escutar música caminhando pela cidade, mas motos aceleradas e carros tunados me atrapalham. usava com frequência até ser atropelado por um halterofilista (ou algo do gênero). ele vinha apressado, teclando em seu celular algum assunto urgente. me atingiu e caí violentamente no chão. ao chocar com o meio-fio, a haste do meu fone quebrou e penetrou meu tímpano. o grandão não me socorreu, tinha pressa. mesmo extraviado o fone continuava tocando "Fast Cars", do Buzzcocks. eu e essa minha mania de viver perigosamente. preciso de um fone wi-fi.
uma versão possível da história da arte: gênios acomodados soterrados pelos medíocres ambiciosos (não fossem os oportunistas de obras póstumas).
é provável que a gente embruteça, mas é possível que a gente se conheça, numa esquina pouco iluminada, protegida da luz ofuscante da estatística.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

o professor universitário, enquanto uma espécie de conselheiro tardio, recebe como matéria-prima para seu trabalho certo volume de sonhos: adiados, mutilados, superestimados, recalcados, esquecidos, perdidos, suspensos, mal-trabalhados, ilusórios, tresloucados, imperfeitos, importados, mal-vistos, mal-quistos, benditos, benignos, alucinados, inalcançáveis, habitáveis, fáceis, justos, impossíveis, necessários, sábios, ideias, fatais, revolucionários, alienados, consumados, e por aí vai... um primeiro dia pode ser tudo e pode ser o último, para esses que sonham e para aquele desiludido ali na frente, esperançoso, graças aos olhos que interrogam: vale?

quarta-feira, 31 de julho de 2019

de repente estava apaixonado pela Cris, sobretudo porque ela estava com seu filho ou filha quase sozinha. um marido bem pedante e cruel a maltratava. me aproximei sorrateiramente, como se pudesse esconder a vontade de acolhê-los. e mesmo próximo de minha esposa, numa espécie de festa ou jantar à beira da piscina, não escondi esse apreço. inoportuno. subitamente estava no meio de uma cidade muito caótica e cosmopolita, parecia Leblon, Champs Elysees, Baker Street, Léo dançava muito break se tornando uma atração entre os que passavam. aí aparece Tiago e um amigo, afirma que está divorciado e me convida para sairmos freneticamente pela noite. estamos perto do Brique da Redenção, logo em seguida passamos por uma espécie de boteco antigo onde vemos um cartaz de um show do Agepê. da rua é possível ver a grande banda tocando um samba clássico, duas lindas mulatas de carnaval sambam ao som: "deixa eu te amar, faz de conta que sou o primeiro". era só a passagem de som, vagamos um tanto mais pela noite à espera da hora marcada, as ruas são escuras e perigosas, o trânsita ora intenso, ora calmíssimo. acordo nessa expectativa e com a música na cabeça.
por muito tempo insisti em ser quem eu era
tarde demais decidi ser quem eu sou
o que serei, do passado já espera
futuro adiado que nunca chegou

quarta-feira, 17 de julho de 2019

o morcego, não fosse um bicho da madrugada, talvez fosse amado pela pomba.
um dia descobri que por não ter voz deveria querer cantar, por ter os dedos rígidos deveria desafiar o violão. não sei se ainda quero ou se ainda tenho forças para a teimosia. aceitar parece simples para quem conhece as regras e sabe jogar. para os desembestados, o mundo nunca girou apenas em torno do sol.
não sei competir, deficiente para essa sociedade. mutilo quem educo, embora a hipocrisia da ética afague meu ego, me ajude a dormir. crio leões como se fossem cordeiros, a poesia é seu pelo. ou couro duro. crio para o escuro como se a arte fosse necessária. não crio canalhas, cultivo párias. produtividade não me seduz, eficiência não me ilumina. prefiro a sina do enviesado, do que a culpa do penitente. sou gente, apesar de tudo. sou tosco e mudo quando o assunto exige publicidade. sou pela metade, incompleto e doce, quem dera ser rude, perfeito e tenro. um chester, um tender, um célebre sonho de juventude. já envelheci de tanto aceitar aquilo que não desejo. o que cega desdenho, o que ameaça não vejo. palco iluminado, prego no centro.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

na janela

abri um pouquinho a janela pra fazer silêncio entrar
mas a fresta, de tão pequena, fez vazar só um assobio
magro, faceiro, rápido se esparramou
entre os móveis e os vidros, travesseiros, cobertores
em todo canto, ao mesmo tempo, aquele fino ressoar
fez da minha casa um espetáculo
pra se ouvir, não pra se olhar
preso, o som nunca se extingue
embora faça o tempo girar
livre, ele foge pra longe
sem paradeiro ou quietude
é o som da juventude para quem o escutar
de novo, sempre, como se fosse na última, a primeira vez.

quinta-feira, 21 de março de 2019

quadras ao (des) gosto popular

com Jair girei o mundo
mas era plano feito pau

já ia desvendar o mundo
caminhando até o final

frente ao abismo tinha um tema
tinha eu nada a temer

nada temo, ele não treme
tremeremos sem saber

Jair já ia, inda não vinha
de sua volta visceral

em suas vísceras continha
um outro espaço sideral

Temer na jaula sem um bloco
pra escrever ou pra rimar

duvida ele rima equinócio
com a taxa cambial

Jair e Temer treme o bloco
é muito mais que carnaval

Temer Jair se acostumando

com ato institucional

com mata a onça e mostra o pau

com a nova era Glacial

com ficha suja criminal

segunda-feira, 11 de março de 2019

comboio

bebo uma cerveja no posto. gosto da moldura que o logo da Shell confere à paisagem: marítimo vulcânico flamejante. um senhor negro, com sotaque da fronteira, passa pedindo trocados a um grupo de jovens que discutem sobre motores. eles enxotam o cara. eu o conheço, já me contou sua história "n" vezes pelas nossas noites em trânsito. está de passagem. talvez por isso a história mude a cada versão. não o condeno, também sou um camaleão que sonha em cair da cama e virar o rei da floresta.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

a nova nova era, de novo, mais uma vez


depois da globalização, da integração, da inteligência coletiva, da convergência, da revolução 4.0 e tantas outras, a nova onda retórica do turbocapitalismo são as tecnologias exponenciais. andamos no caminho irrefreável da singularização, da inteligência artificial irrestrita e de um paradigma de abundância colaborativa. abundância colaborativa? parece até comunismo. no novo cenário, todo cidadão é uma espécie de empreendedor de si, que age não mais como o assalariado de outrora em busca de estabilidade, ou o proletário que tenta se organizar para dialogar e negociar com quem detém e acumula imenso lastro de capital e riqueza no planeta. o self-made man do século XXI está seguro de onde quer chegar e em qual sociedade acredita, e parece dotado de força sobrenatural para fazer seu mundo acontecer a partir de seus propósitos. ele já não nasce com a corda esticada, com a faca no pescoço ou com a água batendo na bunda. têm autonomia. o efeito colateral da nova era, no entanto, é o restrito número de vagas disponíveis. o mundo corporativo, cada vez mais despersonalizado, transnacional e inacessível às leis, regras e circuitos de controle burocrático estatal, gera riqueza com as colaborações premium dos bem-sucedidos (startupeiros e afins), ou sortudos oportunistas da vez, mas quem arca com os milhares, talvez milhões de mal-afortunados que serão substituídos pelas tecnologias exponenciais, pelas plataformas, pelas desintermediações, pelo avanço irrefreável do progresso acumulativo? quem não está disposto a correr, talvez deva ficar sobre as árvores, como fizeram os ancestrais dos hominídeos, na África, há cerca de cinco milhões de anos. o único problema é que, ao contrário da escassez fabricada do século XX, a sociedade capitalista de hoje vive uma escassez real e já não temos tantas árvores para nos refugiar. o fim dos paradigmas da acumulação e da escassez enseja lindos sonhos, mas quem consegue dormir com um barulho desses?