segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Na beira da BR

Quando passo pela BR, entre Porto Alegre e São Leopoldo, noto que:
os prédios estão envelhecendo comigo (a gravidade é pra mim o que a fuligem é pra eles)
a antiga fábrica de óleo segue sua alternância de proprietários, que sempre, e somente, redesenham só a fachada (agora é Dupont),
a beira do arroio da Petrobrás ainda é o lar de uma família que preserva o hábito de estender as roupas de frente para a faixa,
a sauna Coquetel fechou, primeiro puteiro que me vendeu bebida, graças à persistência do Carioca,
não existe mais o adesivo "oi Bibi", recado da Giana colado na janela do antigo apartamento do Marcelo,
há uma escultura com os dizeres "Canoas" na primeira entrada da cidade,
alguns sujeitos fitness usam a beira da faixa para praticar corrida atlética (o que será desses pulmões?! e dos cérebros?!),
o clube ao lado da rodoviária de São Léo reabriu (provavelmente sob nova direção) com o nome Joy (achei tão Manchester),
há muitos pavilhões para alugar e prédios abandonados, cobertos de pixos e com os nomes dos negócios apagados nas fachadas, carcomidos pela poeira cinza escuro,
há obras na ponte sobre o Rio dos Sinos e a vila ao lado (não lembro o nome) cresceu muito,
a parada da Cohab, em Sapucaia, está descoberta e o Atacadão, ali perto, conecta esse bairro com o mundo globalizado das vendas em larga escala (vi um Atacadão em Agadir, litoral do Marrocos - isso não é figura de linguagem),
na mesma linha, em São Leopoldo, na saída para a RS, abriu um Makro, essa primeira experiência de consumo abundante via CNPJ, que ficava no outro extremo, Porto Alegre, ainda nos tempos de inflação, racionamento, fiscais do Sarney (é o que a memória alcança), super Dosul, obras da Tabaí e minha mãe feliz em poder pagar um rancho à vista,
Tudo são lágrimas quando cruzo essa BR, quando lembro do menino apressado que atropelamos saindo do Macdonalds, em disparada tentando vencer a mureta. Palavras do policial frente ao corpo estraçalhado: - a principal testemunha é a passarela - sempre achei que foi um horrível texto ensaiado e de mau gosto. Enquanto o pai chorando ao afirmar que ele não precisava trabalhar, que ele (o próprio pai), que impunha isso como uma espécie de aprendizado sobre a vida.
Não notei se ainda está aberta a churrascaria Zequinha, outra testemunha do caso.
Mas não choro pela alma do guri, cuja rosto nunca esqueci, nos milésimos de segundo antes de se espatifar contra o pára-brisa do carro.
Choro porque esse trecho, talvez essa estrada, tenha me feita rodar tanto, andar tanto, de um lado a outro, mas sempre na direção de nada. Lugar algum. Sempre o mesmo.
Gastei pneus, gastei bilhetes, gasosa, até tênis gastei nesse trecho. Gente viva, gente morta, gente que nem reconheceria mais. Andei na chuva, no perigo, de Real Rodovias, de Central, de trem, de táxi, carregando e carregado. Mas não compreendo porque o nome BR, se continuo por aqui, apenas um pouco mais pra cima.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019


Conheci Daniel Johnston bem depois de ter gravado minha última composição em fita cassete. Ignorei aquela camiseta do Kurt Cobain. Quando ele apareceu na MTV não era tão simples encontrar as informações, a gente ouvia as histórias dos artistas através de boatos, de alguém que comprava uma revista importada ou de um programa legal de TV, Lado B, por exemplo. Mas mesmo sem saber quem era ele, ouvi sua música ao longo da vida, de forma desavisada, numa trilha ou numa versão, em Kids ou com o Yo la Tengo. Só quando saiu seu documentário que descobri esse cara, o que ele fazia, bem como a própria noção de músico outsider. Tivesse conhecido antes, talvez, teria reduzido minha ansiedade de adolescente em busca de identidade. Essas noções, talvez, teriam ajudado a explicar minhas próprias práticas e desejos de juventude, quando experimentava no silêncio da madrugada do meu quarto todo tipo de gravações em fitas cassete usadas, por mim ou por gravadoras, como modo de expressão. Deixava trechos de cursos de inglês para sobrepor um som de folha raspando no ventilador conectado a uma caixa com um inverse delay. O único truque de mixagem que aprendi nessa época foi usar um tape deck duplo e colocar uma fita tocando junto com um microfone captando outro canal. Meu vizinho Bexiga, deu a dica, na época vocalista do ORTN, "sou do DMLU, quem não gostou, fuck you!" Acho romântica a expressão outsider music, mas não a conheci a tempo de me enquadrar nela, aliás, sempre chego atrasado nos enquadramentos e fico pelo caminho, à procura de um nome que se apegue ao que tento ser. Depois que assumi uma espécie de carreira produtiva padrão, mais distante daquele sonho de menino, de ser rockstar, sempre pensei que as madrugadas brincando com o gravador me tiraram de um caminho, quiçá, virtuoso. Deixei de ler muita coisa, de aprimorar meu inglês, de estudar para aquele concurso público. Em troca, acumulei duas caixas de sapatos com registros em cassete. Que, provavelmente, nem tocam mais, graças à perda do magnetismo. Talvez, também eu seja esse talento magnético perdido numa daquelas gavetas, sempre em fuga, sempre atraído por essas coisas que ainda não tem nome.