quinta-feira, 29 de novembro de 2018

"cliente desde 1990". um talão de cheques. de longa data. patrimônio. quase imaterial. não aceito entre aqueles que já transitam pelas start ups. entre os que têm nome de geração. entre os verdadeiros patrimonialistas. entre os donos. "cliente desde 1990" está escrito nas minhas folhas. transfusão de um banco para outro banco. de um fundo falido para um fundo a falir. e eu leio essa pequena frase ou expressão como um Fernando Pessoa ou um Olavo Bilac. "cliente desde 1990" é um atestado de transição. daquele século da tinta para este século do..., do..., do... dos séculos. do século da tinta para o senhor de todos os séculos. "cliente desde 1990" aponta para o futuro onde ninguém aceitará o teu cheque. aponta para o desalento do crédito. aponta para uma outra depressão. não mais a econômico ou a social, mas a psicológica. não é um termo exato. o humano não se deprime, ele se esvai, ele se extingue, ele se distrai. por aquilo que não é. pela frase escrita no papel, um milhão de reais, desde 1990, mas que não vale mais, não pela inflação, pela tinta. ou pela letra formal. desde 1990 que não te vejo. e nem quero ver. ao não ver não desejo. e assim é viver em pré-datado, viver na expectativa do papel. viver na resolução bancária. o problema não é o cartão de crédito. o problema é o mesmo de antes. com ou seu talão, desde quando tiver que ser. não conheço mais tempo fora do volume ideal, da força benfeitora e capital, a moeda. desde quando assumida como tal. "cliente desde 1990" e podia ser pior, cliente sem o tempo, desde sempre, sem a chance de rasgar o bloco.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

eu esperava a tempestade, mas não aguentei acordado. quando o primeiro granizo me quebrou um dente, ainda com boca fechada, fugi correndo na tentativa de encontrar, pelo menos, um breve o tesouro, cagada de marfim.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

meu filho sonha acordado e isso me preocupa. levanta da cama e profere aquelas frases sem sentido em tom sorumbático e confuso. no susto, agonizo, mas depois percebo que esse devaneio é quase que minha última esperança, entre o pessimismo e o desconforto da época. o apego ao tempo certo é vertigem. vida nunca cessa. e acelera, enquanto bocejamos em efeito cascata.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

antes de ser pai, estava no tempo, depois de ser pai sinto o tempo, num tênis que deixa de servir, num pêlo que nasce, numa manobra inusitada no futebol, numa piada espontânea contada num almoço qualquer. sumiram os relógios, entrei no ciclo, sentindo a dor nas costas e a finitude que se imagina eterna, toda noite querendo rasgar o peito. às vezes eu uivo, às vezes eu deito. e choro feito criança. amanheço um dia mais novo, na idade desse filho que avança até me alcançar, até me ultrapassar, provavelmente, já fora de campo.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

nessa noite de ventania e chuvisco, vi vários guarda-chuvas em pedaços, abandonados pela rua no caminho pra casa. nylon de qualidade duvidosa, latão e madeira baratos, chuva pouca, vento em desalinho. péssima qualidade de tudo visto por vista cansada. um guarda-chuva do avesso, molhado, faz mais jus a seu nome, imaginado por quem não obedece não ficar molhado.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

a foto que não tenho


um comentário aleatório me fez lembrar de um episódio perdido na vastidão da memória. eu tive um grande amigo que era o maior contador de histórias que conheci. de todo lugar tinha um relato ou experiência inusitada para contar. era uma fogueira a reunir gente, por onde passasse. sua narrativa hipnotizava. fui visitá-lo no Rio de Janeiro e me contou sobre seu pai, que vi uma única vez em cerca de 30 anos de amizade. contou diferentes histórias do velho, tempos de boemia carioca. fez uma promessa de um dia irmos até o prédio abandonado da Mesbla, onde o pai trabalhara no juventude e onde à época restava apenas um andar de escritório para levar adiante burocracias da massa falida da empresa. como era comum, duvidei da história, mas ele afirmou categórico: "vamos subir no terraço, pra ver de perto o letreiro da loja e o grande relógio, lá em cima, seu Elmo, amigo do meu pai trabalha lá ainda e pode nos levar." duvidei com toda minha convicção. acontece que numa daquelas tardes quentes, entre uma ida ao centro e um passeio pelo Botafogo, acabamos subindo mesmo, numa espécie de visita turística na contramão. vimos uma sala imensa onde permaneciam praticamente instalados os primeiros computadores da grande loja de departamentos, seu Elmo nos mostrou com brilho nos olhos: "foi uma inovação para a época!" caixotes maiores do que geladeiras, que desfraldavam formulários contínuos repletos de poeria. transitamos pela insalubridade do abandono, pelo silêncio da falência, pela tímida esperança da modernização à brasileira. lá em cima, nos posicionamos perto do letreiro para um foto, aproveitando a bela vista da cidade maravilhosa ao fundo. não lembro se vi essa foto impressa (era esse tempo ainda). também não sei como isso emergiu hoje na minha mente, sem aviso ou preparo, com a contundência de uma agulha. doeu lembrar esse momento, pela saudade do amigo, da juventude e do Rio de Janeiro, também por vislumbrar nesse prédio abandonado da memória, no letreiro não mais iluminado lá no alto, certo desconforto com a fé no progresso. desconforto com a apregoada insistência humana em erguer monumentos, racionalizar sua presença no mundo, sem prever a ruína. a foto deve ser irreconhecível, seu Elmo era um péssimo fotógrafo.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

basquete

eu era gurizão e apesar de ter menos de um metro e oitenta me apaixonei pelo basquete. por uns cinco anos joguei todo dia. descobri isso graças a um colega novo da escola (Dudu) e montamos uma espécie de legião dos basqueteiros. graças a nossa fissura por jogar e ao destino, que colocou uma amiga na secretaria de esportes do município (Esteio), conseguimos montar um time oficial. a prefeitura comprou umas tabelas e treinávamos semanalmente com esse apoio. tínhamos um treinador voluntário, éramos amigos, felizes, saudáveis, esportistas. jogávamos um pouco mal por conta da estatura mediana. ossos do ofício. tamanha "estrutura" disponível, fomos convidados a sediar os jogos intermunicipais de basquete do Rio Grande do Sul (JIRGS). enquanto sede, enfrentaríamos os melhores do estado. de três jogos, ganhamos um. não tínhamos uniforme e conseguimos emprestado os trajes do time de futebol da cidade, com mangas curtas. foi embaraçoso e demodê. para mim nem tanto, pois joguei de toca de natação para que meus dreadlocks não atrapalhassem. contra o time de Caxias do Sul sentimos o tempo fechar. eles jogavam muito. isso foi no final do século XX, 1900 e tanto. um cara enorme enterrou em cima de mim. eles eram fortes, grandes, habilidosos. perdemos por muito! de camisetas de futebol, mas com energia e respeito. naquele ano conheci basqueteiros de Caxias. hoje, como um cidadão da serra, cruzo com alguns pelas ruas, não me reconhecem. tranquilo, estou acostumado a transitar nas entrelinhas de tudo que realizo. não ser notado não me entristece. me entristece ver que todo esse esforço, todas essas pequenas conquistas, minhas, de minha turma, dos jogadores de Caxias, não prosperam. simplesmente morrem. não conseguimos provar o valor desse investimento, não conseguimos mostrar que coisas como esporte, cultura, lazer, importam. a cidade de Caxias lotou ginásios com seu time de basquete. isso não tem valor financeiro. isso não vale investimento. não há retorno. criar ou cultivar hábitos, posturas, desportividade, sonhos,  não interessa a ninguém. é caro demais. observo as notícias sobre o Caxias Basquete lutar para se manter no campeonato nacional, vejo as ligas internacionais, a riqueza que circula, os hábitos, as possibilidades. não quero comparar, não quero me sentir um vira-lata, não quero lembrar das frustrações que acumulei lutando por essas migalhas que dão sentido a vida. um jogo de basquete, um show de boa música, um filme sobre nossa humanidade. nada supera o aço, nem nosso cansaço e desistência. todo dia é um toco, por tempo indeterminado.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

(um reggae deprê dos anos 1990)

céu cinza flor de prata
em meu colo eu não queria mais
nem tanto faz ou tanto fez demais

meu coração não aguentaria tanta cor
não fosse o amor

quantas cantigas cantarei
tentando viver a luz no quarto escuro enquanto lá fora
aves não cantam e tudo encharcam as gotas do meu penar

traria a fé nas coisas boas se coubesse em mim
mas eu sou tão ruim

segunda-feira, 4 de junho de 2018

é comum no interior Espanha encontrarmos múmias. o clima favorece esse modelo de passagem para o outro lado. o clima ampliado, encontro da geografia com as humanidades. aqui na serra tem sido comum encontrar pessoas dormindo na rua, hoje mesmo cruzei um casal, aconchegados sob uma coberta branca que protegia da garoa fina. me interpelaram por uns trocados para um cachorro quente, quase 11 da noite, quase 10 graus centígrados. achei aquelas poucas moedas incapazes de amenizar ou projetar futuros possíveis. agradeceram. quando nos deparamos com múmias e pessoas na rua há uma tendência de remissão ao passado. o que veio antes? por que? das causas materiais às espirituais, tudo se resumirá em intriga, juízo ou imaginação. olhar essas figuras em sua presença, as múmias e o casal na rua, é um esforço incômodo demais, quase inconcebível. não há antes na sensação de frio, não há depois para os aprisionados pelo casulo de um corpo morto. presenças que nunca distraem ou vagueiam. irrompem na cotidianidade do fluxo, no turbilhão das notícias ou no passo apressado para casa, rumo ao cobertor. não há porque tatear o passado quando todos os presentes se sobrepuseram como barbárie. nenhuma explicação será possível, nenhum centavo ou cortejo fúnebre justos. estamos eleitos pelo que vimos a cumprir a estrada cambaleante da humanidade rumo a sua falta de sentido. acumulando presentes na bagagem, como fósseis.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

o consultor

a figura de nosso tempo não é o grande capitalista ou o ativista ecológico. a figura de nosso tempo é o consultor. o consultor faz a mediação entre o dinheiro e o bem-estar, o consultar faz a mediação entre a produção tóxica e a responsabilidade socioambiental. o consultor não produz, mas é especializado nos meandros que envolvem o produzir em escala global e burocrática. o consultor escapa dos riscos ao entregar receitas de êxito para todos, receitas contraditórias. lucro máximo e qualidade ao mesmo tempo, produção barata recorde aliada a baixos índices de poluição e pouquíssimos problemas trabalhistas. o consultor entrega o que promete, em números, em números objetivos. essa figura "entre" não é real, é um símbolo que transita entre o público, o privado e a sociedade civil (sic.?), entre os produtores e os grevistas, entre os reis e os primeiros ministros (nesse campo ele emula um conselheiro real). o consultor leu todos os manuais e controla os procedimentos que ninguém controla, não através dos botões, mas através de placas. ele não faz, ele indica. por isso é o símbolo de nosso tempo, porque é pura abstração que determina o concreto através de números, de quantidades, de exatidão. pouca coisa lhe escapa, embora o risco calculado de sua atividade vá para os outros, para as iniciativas privadas que tentam fazer ou para os governos que tentam apaziguar as populações e manter-se. o consultor é o ser ideal, mais do que o filósofo, é o real intérprete de nosso tempo. sua estética é planilha. gráfica!

quarta-feira, 23 de maio de 2018

ontem encontrei um gênio
e já fiz um pedido
mas ele era tão genial
que já tinha me rendido
roubado minhas rimas
meus pruridos
numa batalha de rap, repente, sei lá...
naquele afã da rapidez de raciocínio íntimo
um gênio instintivo
um gênio no íntimo
no ínfimo, estúpido eu positivo.

segunda-feira, 26 de março de 2018

há centenas de araçás inalcançáveis nas copas das árvores nas calçadas do centro de Caxias. há também milhares de sonhos nos topos de todos seus lugares. ambos despencam do alto sem que ninguém os perceba. mancham e atrapalham o fluxo dos pedestres. de semente a bagaço espatifado, num instante.

quinta-feira, 22 de março de 2018

permaneço, calo, amanheço, meu terço é quarto, sexto, ex excesso de sempre, d'eu mesmo quando pareço com o preço que não reconheço. compasso canhesto de brilho espesso sobre som esparso atravessado por ouvido de tuberculoso surdo.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

na esquina da Sinimbú com a Visconde de Pelotas passo por um florista que me oferece um arranjo de flores com nome de peixes, Alcaléa, Abrotéa, sei lá. não sou botânico, minha especialização é Administração. aceno um não com a cabeça e sigo pisando forte pela calçada com minhas certezas de novecentista.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

se eu não fosse um pouco surdo, talvez mutasse o mundo.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

as ondas quebram perfeitas ao fim da tarde no canto da ilha do Batuta. espelhos d'água deslizam em tom róseo depois de lamber as pedras da ilha rumo à terra firme. surfistas se amontoam para chegar nos lugares certos, onde uma ou duas braçadas serão suficientes como propulsão a jato até a beira. quatro ou cinco manobras, quem sabe um tubo pelo caminho. vez ou outra passa um cardume, um peixe espada, golfinhos. há quem esqueça desses detalhes, há quem na hipnose da onda perfeita esbraveje com os outros, defenda seu território, exija prioridades. o humano é bicho em terra e em mar. o sol se põe no lado oposto às ondas, na difusão das nuvens suaviza luz e sombra. enquanto todos disputam seu posto preparados para a próxima série, só consigo prestar atenção no som que vem da ilha, a umas cinquenta braçadas de distância. as revoadas de andorinhas, garças, maçaricos e seu lá que tantas espécies acomodam-se nas copas. e cantam em tons e harmonias tão variadas que quase competem com a maré e as ondas. quase pois não prestamos atenção, quase pois não recortamos a escuta a fim de ir até a ilha, encostar o ouvido ali, no pé ou no topo das árvores para desvendar o que os pássaros contam uns aos outros, antes de dormir. será uma oração? um acalanto? um plano de caça para o dia seguinte? memórias de outros pássaros? definições sobre as próximas migrações? apenas flutuo sobre as ondas, enquanto os parceiros de surfe recortam a superfície aquática a minha frente. não vou na série que irrompe estrondosa e macia em quase dois metros de espuma. retorno de um mergulho profundo e demorado após furar uma dessas e espero o chiar persistente das bolhas brancas da espuma evaporarem para ouvir os diálogos aéreos uma vez mais, antes da noite. uma lua se anuncia ali atrás, preciso de condução para a casa, mas perdi a vontade de prancha hoje, só quero voar.