sexta-feira, 3 de agosto de 2018

a foto que não tenho


um comentário aleatório me fez lembrar de um episódio perdido na vastidão da memória. eu tive um grande amigo que era o maior contador de histórias que conheci. de todo lugar tinha um relato ou experiência inusitada para contar. era uma fogueira a reunir gente, por onde passasse. sua narrativa hipnotizava. fui visitá-lo no Rio de Janeiro e me contou sobre seu pai, que vi uma única vez em cerca de 30 anos de amizade. contou diferentes histórias do velho, tempos de boemia carioca. fez uma promessa de um dia irmos até o prédio abandonado da Mesbla, onde o pai trabalhara no juventude e onde à época restava apenas um andar de escritório para levar adiante burocracias da massa falida da empresa. como era comum, duvidei da história, mas ele afirmou categórico: "vamos subir no terraço, pra ver de perto o letreiro da loja e o grande relógio, lá em cima, seu Elmo, amigo do meu pai trabalha lá ainda e pode nos levar." duvidei com toda minha convicção. acontece que numa daquelas tardes quentes, entre uma ida ao centro e um passeio pelo Botafogo, acabamos subindo mesmo, numa espécie de visita turística na contramão. vimos uma sala imensa onde permaneciam praticamente instalados os primeiros computadores da grande loja de departamentos, seu Elmo nos mostrou com brilho nos olhos: "foi uma inovação para a época!" caixotes maiores do que geladeiras, que desfraldavam formulários contínuos repletos de poeria. transitamos pela insalubridade do abandono, pelo silêncio da falência, pela tímida esperança da modernização à brasileira. lá em cima, nos posicionamos perto do letreiro para um foto, aproveitando a bela vista da cidade maravilhosa ao fundo. não lembro se vi essa foto impressa (era esse tempo ainda). também não sei como isso emergiu hoje na minha mente, sem aviso ou preparo, com a contundência de uma agulha. doeu lembrar esse momento, pela saudade do amigo, da juventude e do Rio de Janeiro, também por vislumbrar nesse prédio abandonado da memória, no letreiro não mais iluminado lá no alto, certo desconforto com a fé no progresso. desconforto com a apregoada insistência humana em erguer monumentos, racionalizar sua presença no mundo, sem prever a ruína. a foto deve ser irreconhecível, seu Elmo era um péssimo fotógrafo.