terça-feira, 17 de março de 2020

Uns conhecidos de uma surf shop me convidaram para uma excursão pra praia do Rosa. Seria a primeira vez que eu andaria de van depois de um grave acidente que sofri cerca de dois anos antes. Neguei com veemência até ser convencido pelo "tudo de graça". Na viagem, por conta do trauma ou algo parecido, tinha certeza que algo daria errado. Batata! Num entroncamento em São João do Sul, atropelamos uma vaca. A BR-101 ainda não era duplicada e o animal atravessou a pista no meio da madrugada. Era uma noite fria, não lembro se era inverno (provavelmente outono). Eu e um amigo ficamos preocupados com o motorista, única pessoa que se feriu, luxou a perna, e tomamos a frente para ajudá-lo, além de responder para a polícia, quando chegou. Entre outras, pra mim, aquela noite foi uma lição sobre humanidade. O motorista, junto da empresa responsável pela van, nos informou que seria necessário guinchar o veículo e esperar outro transporte vindo de Porto Alegre. Passaríamos a madrugada por ali. Enquanto esse tema se resolvia, a polícia rebocava a vaca com um sorriso de canto de olho, afirmando que "vacas atropeladas nunca tem dono, mas tem carne pro churrasco", dando a impressão de que não teriam a mínima vontade de encontrar o responsável pelo animal solto no lugar errado. Pra piorar, quando tudo foi resolvido, voltamos, eu, meu amigo e o motorista para a van e os outros membros da excursão já estavam confortavelmente instalados, entre cobertores e casais, sem espaço para nos abrigarmos do frio. Ficamos em pé, ao relento, vendo a lua e filosofando por um tempo, pensando no egoísmo, na seleção natural, nessa teorias sobre o que é o homem frente a um momento de exceção. A parte bonita da história é que fomos convidados por um simpático senhor da vizinhança a ir para sua casa tomar um chá quente, comer bolo e outras delícias, como forma de nos abrigar daquele frio tenebroso. Toda vez que agradecíamos, ele repetia: "que isso gente!", numa espécie de indignação natural. De dentro da sala aconchegante da casa, olhávamos para a van abandonada na estrada, sem o vidro da frente, atravessada pelo vento e pela insensibilidade dos nossos companheiros de excursão. Naquela noite, parecia visível pra mim essa espécie de muro entre a humanidade e a bestialidade, entre a colaboração e a competição. Me senti abrigado e confortado, mas atento, sempre atento, para a incapacidade humana de coletividade. Os pequenos momentos de exceção nos testam e ensina, talvez nos habilitam para os estados de exceção que vivenciaremos, caso a vida não nos seja tão breve.  Quando a van substituta chegou, pedi para me deixarem na rodoviária mais próxima, em Sombrio. Não tinha estômago para seguir viagem com aquela turma, além de acreditar que era culpa minha a pequena tragédia da viagem. Sempre fui um misto de sofisticada razão complexa e crendice supersticiosamente exagerada.  

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