sábado, 2 de novembro de 2013

Obatalá

uma tarde dessas saí da natação e caminhei até a esquina onde uma casa de madeira sem pátio ou calçada me convidou ao passado. a grama era crescida e mau aparada, de uma fofura rara para os passeios urbanos. bem na esquina se erguia linda e carregada como anúncio do inverno, uma bergamoteira dessas selvagens, de mato, da casca fina, pequenina, tão difícil quanto doce e suculenta. olhei pra dentro da casa, pra porta da frente com aquela janela encostada, com certo receio de pegar uma. mas o pé estava tão carregado, que parecia pedir para aliviar o peso incompatível dos galhos. só um inverno imprime tanta fertilidade a bergamota, é um caso de amor, de cumplicidade, porque aquele suco, embora frio, nos aquece, talvez com vitamina, talvez com doçura para cruzar caminhos de gelo no nariz e vento da nuca a lombar (as vezes até o rego). comi três na descida.
ontem, prenúncio de primavera, desci do carro para ir à padaria e dei de cara com uma cerejeira, que um mês atrás espalhava perfume de flor pelo centro da cidade, plena Júlio de Castilhos (essa avenida generalesca!). vinha da natação e colhi algumas cerejas, essa verdadeiras, que mancham e avermelham as bochechas; suculentas e sensuais. lembrei da bergamoteira, que no meio do inverno, em plena produção, foi podada radicalmente. sobrou um toco na esquina, um tronco quase morto que agora conduz o passo ante o terreno íngreme. será que fui eu? aquele furto inocente teve relação com o extermínio? espero que não. e espero que essa peculiaridade frutífera da cidade dure, pois é linda. araçás, ameixas de inverno, pitangas, bergamotas, goiabas do mato, laranjeiras, guabijús, cerejas e caquis. uma quase metrópole que ainda frutifica de forma sadia e poética suas calçadas. que são mal cuidadas, porcas, irregulares e bêbadas, donde brotam árvores férteis a tornar amenas asperezas cotidianas. percursos adocicados pela natureza teimosa da vida insistente, que povoa campo bruto e místico, sem tempo para desfrutes. 

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