terça-feira, 22 de abril de 2008

Som de rito pop




É difícil imaginar a existência do homem sem a música. Mesmo se descartarmos os sons, a observação de movimentos, de imagens, de formas sempre nos sugere ritmos e construções sonoras. Apreciar a musicalidade é muito mais que um simples exercício auditivo, ou um estudo matemático de combinações agradáveis de elementos distintos. Música é uma experiência primitiva anterior à linguagem e anterior ao próprio homem.
Uma experiência mística dos povos que veio tornar-se um produto, como qualquer artigo da sociedade de consumo. Apesar da assimilação da música em estado puro, pelo universo do capital, ritmo e sonoridade ainda formam a base para rituais das mais diferentes etnias em todo mundo. A ligação do homem com sua origem, sem levar em conta crença ou tradição, está intimamente conectada à musicalidade. Através da manifestação musical índios, batuqueiros, cantores gospel, pastores da universal, aborígenes, uma infinidade de grupos celebram suas passagens. Casamento sem valsa, carnaval sem cortejo, como seriam?
A união dos sons rituais com o culto pop contemporâneo celebra alguns grandes êxitos comerciais e muitas experiências de inovação musical, algumas um tanto desconhecidas do grande público. Ravi Shankar é exemplo de um grande expoente do misticismo musical ritualístico convertido em celebridade pop. O sitarman indiano trouxe para o Ocidente o som doutrinário de seu país e o misturou com a produção de entretenimento puro. O resultado foi sucesso em larga escala, tanto entre os adeptos religiosos quanto o público ligado ao seu estilo, simplesmente.
Nem tão populares, os brasileiros do Terrero de Jesus temperam cânticos de candomblé com a pimenta do jazz a la New Orleans. Soam como novidade, mas esta fusão parece remontar algo ainda mais antigo do que seus próprios elementos. É como se eles tivessem encontrado o denominador comum, a musicalidade afro do continente americano, em estado pré-lapidar.



As críticas puristas são uma constante entre tais movimentos que popularizam entonações de práticas religiosas, levando estas composições à condição de um produto como outro qualquer. O argumento comum é que a música, dissociada de seu princípio fundamental, o rito, não possui sentido, por isso não tem razão de ser. Sem falar em brados sobre banalização, heresia, apropriação indevida.
O fato é que a propagação das músicas étnicas, ou mesmo hinos ritualísticos entre o público externo a sua crença ou ao contexto religioso, quando executados de forma apropriada, óbvio, pode vir a favorecer e popularizar as práticas religiosas de origem. A música como um culto particular é o fator mais pontual desta justificativa. Ou seja, a universalidade que a linguagem musical possui eleva esta arte como o principal baluarte ideológico de qualquer costume, crença, atitude, postura, etc.
O rock é um grande exemplo desta força. O ritmo ajudou a exportar para o mundo todo um estilo de pensar e agir de um povo, em detrimento de costumes tradicionais de outros, ou de uma nova convivência harmônica que aos poucos se tornou irremediável.
O enfraquecimento da crença, a queda dos mitos e um abismo metafísico vivido pela nossa geração são capazes de subverter todos os paradigmas e postulados, deixando vivo somente um aspecto essencial: a celebração estética. Se o povo gostar, pronto. Fodeu-se! Não tem mais jeito. Não precisa ser vendido, não precisa ser comercializado, não é necessário nem ir até as prateleiras, o consumo massivo se dá ao esforço de um clique, numa confortável poltrona. Nenhum dogma resiste a força instantânea da nova ordem e os nossos sagrados rituais estão por aí, a venda, ou no livre comércio das comunidades virtuais.
Exaltar a negatividade deste fato é deixar passar o lado sedutor e produtivo que esta situação nos expõe. Se um dia foram necessárias cruzadas, catequizações, evangelizações, hoje em dia as estratégias são outras. A questão é que negar o processo, ou tentar frear a explosão já florescida é perder um tempo precioso. Devemos dar conta de levar o fundo, junto com a superfície, ou celebrar este tempo onde o ritual sincrético é a chave para entender nossa colocação absurda nesse mundo caótico. Convivência e harmonia, acima de pressupostos, de visões antecipadas e conceitos fundamentais, relativizar os gostos musicais, amenizar os fanatismos, propagar os ritos com suas peças fundamentais: a celebração do homem e sua natureza em profunda convulsão.

Jai Uttal
Daniel Namkhay
Konono

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