sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

"contos contam contos"



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Estava pronto a nascer, percebia luz e cheiros com os fracos sentidos que me compunham. Uma forte ânsia expelia meu corpo daquela concha perfeita. Mas mamãe fez-me esperar mais oito dias. Desaprendi a voar.
Por excelência acendia charutos para meu avô aos sete anos e nadava 1500 metros de um só fôlego. Podia ser considerado feliz, estudioso, sadio e irrequieto com aquele tempo onde as navalhas ainda afinavam os rostos largos de uma família bonachona.
Tinha um amigo, que valha a pena narrar, só um, afinal, poucos hoje têm paciência de percorrer tortuosas linhas até descobrirem sozinhos meadas satisfatórias. Genialidade é artigo de quinta! Não precisamos mais. Separava-nos um rio de Prata, uma irrelevante diferença de idade e certas percepções contraditórias típicas dos quase dez anos.
Pois o gaúcho escrevia certos dilemas em forma de redação que me espantavam sobremaneira. Tinha astúcias e capacidades de corpo, mas transcritas em frases. Como se gingasse entre os fonemas ou os sentidos mesmo, criando jogos vezes absurdos, vezes extasiantes lá dentro do raciocínio. Fazia sinapses bailarem num ritmo de alguma substância boa, adrenalina, serotonina, sabe-se lá. Eu adorava ler o que escrevia e ele adorava escrever o que eu lia.
Compartilhávamos um jogo, e como meu vocabulário tinha profundas deficiências me especializei nos cortes físicos. Nadar, pandorga e aquela sapata. Do lado de lá do rio chamavam Jogo da Amarelinha. Aqueles quadrados numéricos onde a pedra vai delimitando o caminho com o objetivo de passar por todos números até o Céu; mistura cansativa de boa pontaria, coordenação motora, preparo físico, sorte, essencialmente, e muita prática. As velhas metáforas da vida em forma de passatempo metabólico de crianças hiperativas ineficientes...
Meu amigo nunca chegara ao céu. Nos dois anos que passamos juntos, freqüentando lugares comuns: bosques, buracos de fechaduras, armários madrigais ou campos de milho e araucárias, nunca conseguiu tocar o céu com seu pé 42, aos 12 anos. Porque aos 18, descobri mais tarde, já calçava 46; não tinha sapato na face da terra capaz de acomodar aquele polegar imenso. É. Um pouco deformado pelas insistentes tentativas da amarelinha e mais uma teimosia de sua mãe em aproveitar os calçados de um ano para o outro.
Sofria de doença rara, um gigantismo físico, mas que se transpôs para a alma também. E foi uma ave que cresceu sem parar, tentando alçar vôo, mas com um pesar sempre mais incrustado sobre as penas e os pensamentos.
Poderia não ser um grande escritor sobrevoando os horizontes universais das literaturas fáceis. Mas era um gigante, em todas suas proporções, com a leveza da palavra de fio concebido para o corte mais profundo.
Julio Oliveira morreu no mês do Vento Norte. Até crimes hediondos têm penas reduzidas nesta época, dizem que tais sopros induzem a insanidade. Melhor assim, deve ter vagado menos pelo limbo terreno, tendo alcançado, desta vez sim, um céu verdadeiro.
Naquele mesmo outono surgiram alguns brotos em mim. Aos quase setenta anos a tarefa é esquecer paulatinamente tudo que prometemos nunca fazer um dia. Justo porque tudo se dá, eficientemente, ao contrário daquele desdém. As genialidades, as idéias revolucionárias, jeitos diferentes de agir e pensar, acabam se tornando mais úteis às nossas páginas romanescas, a estes folhetins aguados de hoje. Escrevemos sem tinta, sem volúpia, sem o ranger áspero das datilógrafas. Somos macios, certeiros, construímos o texto, à maneira que o visualizamos pintando a tela. Substituímos, colamos, refazemos frases; e as possibilidades são infinitas e as combinações são testadas em execução.
É uma vida mais limítrofe. Realizar testando, aprovar fazendo.
A saudade que sinto do Julio é como da sanidade. Aqueles dias criança sonho entre pessegueiros e aroeiras matando formigas, passarinhos e infelizes. Não pelo fato da recordação, da saudade, melancolia rasgando o peito, mas porque hoje enlouqueço lentamente, em espasmos descontínuos, mas num paradoxo de sanidade absurda ao tudo sorver e narrar. Não passo de um personagem Cortázar.

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